Elisa e Marcela: o primeiro casamento religioso homoafetivo da Espanha aconteceu em 1901 e virou filme da Netflix

Elisa Sánchez Loriga e Marcela Gracia Ibeas são protagonistas de uma história real popular na Espanha. Antes de virarem personagens do filme original Netflix dirigido pela espanhola Isabel Coixet, que acaba de estrear no catálogo da plataforma, a dupla já havia sido imortalizada até pelo escritor Eduardo Galeano, em seu livro Mulheres.

As duas jovens ficaram famosas em 1901 pela ousadia de escolherem viver um amor considerado escandaloso e imoral. Se conheceram numa escola de freiras e se apaixonaram à primeira vista. Elisa era sobrinha de freira, enquanto Marcela era filha de um homem controlador e violento e uma mãe submissa.

‘Elisa e Marcela’ / Divulgação

Decidido a bancar o relacionamento, o casal buscou por independência financeira. Depois, para se livrar das ameaças da comunidade, ficou combinado que Elisa assumiria a identidade de Mário, um primo falecido. Em plena Espanha do início do século XX, Elisa e Marcela conseguiram enganar a Igreja com Elisa passando-se por Mário. Assim elas se casaram diante de um padre, como marido e esposa, com direito a fotografia e documentos assinados.

Quando as autoridades finalmente descobriram que Mário era na verdade uma mulher, iniciou-se a caçada para capturar e punir o casal lésbico. Nesse momento, a história já era publicada por jornais de todos os cantos da Espanha, e a dupla ficou famosa. Fugiram para Portugal, foram presas, escaparam e se perderam em Buenos Aires. Reiniciaram a vida por lá e nunca mais se ouviu falar delas.

É nessa saga de amor, desobediência, coragem e busca por liberdade que se baseia o filme de Isabel Coixet (mesma diretora de A Livraria, também disponível na Netflix). Filmado todo em preto e branco, o longa imortaliza Elisa (Natalia de Molina) e Marcela (Greta Fernández) agora no cinema, recuperando suas histórias desde quando se conheceram até um possível desfecho na Argentina.

O roteiro da obra é escrito pela diretora em parceria com Narciso de Gabriel, estudioso desse caso de primeiro casamento homoafetivo da Espanha e autor do livro Elisa y Marcela – Más Allá de los Hombres (“Elisa e Marcela – Além dos Homens”). Já a produção ficou por conta da Netflix, que conseguiu promover a estreia do filme no Festival de Berlim deste ano mesmo em meios às polêmicas sobre a participação de empresas de streaming nos grandes festivais de cinema – para participar do Festival, o longa foi projetado em algumas salas de cinema da Espanha.

Reprodução de fotografia das verdadeiras Marcela e Elisa

Assim, o filme parece emergir como uma tentativa da Netflix de repetir a exitosa trajetória de Roma, do mexicano Alfonso Cuarón. Entretanto, Roma e Elisa e Marcela pouco possuem em comum além de serem dois filmes rodados em preto e branco e protagonizados por mulheres.

Coixet tinha uma difícil missão em mãos: apresentar a história de Elisa e Marcela ao mundo com um bom filme, mas sem desrespeitar suas trajetórias e contando com poucas informações para isso.

Esta é uma obra muito menos íntima que Roma. A diretora trabalha com certo distanciamento, buscando auxílio no material de pesquisa de Narciso de Gabriel. Pouco se sabe sobre as personalidades das protagonistas, suas motivações, subjetividades, conflitos internos. A imprensa da época certamente tratou o casamento lésbico com sensacionalismo, deixando de lado os perfis das duas mulheres. Sabemos que eram pessoas corajosas e altivas, sem dúvidas, mas tais lacunas acabam reverberando na potência do filme.

De sua parte, Coixet demonstra não ter querido preencher a ausência de informações sobre o íntimo de suas protagonistas com invenções para fins dramáticos. Por isso, ela se limita a reproduzir “a história pública” do casal, permitindo-se apenas criar um desfecho imaginado, no qual as protagonistas fazem as pazes com o passado de desventuras e encerram o que ficou em aberto pelo constante estado de fuga.

Elisa (Natalia de Molina) e Marcela (Greta Fernández)/ Divulgação

Por um lado, as escolhas da diretora tornam Elisa e Marcela  um registro sensível de incontestável importância.  É fundamental, afinal, exercitar a memória coletiva e  resgatar histórias de mulheres icônicas. Só pela temática o filme já atesta sua singularidade e relevância. Mas, por outro lado, retratar Elisa e Marcela como duas mulheres “corajosas e ponto” resulta em um pouco menos do que se espera de tal obra.  

Não construir camadas de subjetividade e pontes para a contemporaneidade, restringindo-se a trilhar somente pelo realismo de época e pelo romance, vez ou outra fazendo uso de frágeis alegorias (como na cena do polvo), acaba reservando ao filme o lugar de simples cinebiografia ficcionalizada.  Isso não é exatamente um problema, mas, em algum grau, define Elisa e Marcela como seres unidimensionais de uma obra de ficção, gênero que por definição daria mais liberdade criativa à diretora.

Ao final, fica a sensação de que teria sido gratificante descobrir como Coixet imagina as inseguranças de duas adolescentes que se percebem homossexuais na virada do século XIX para o XX, ou como ela pensa que foi tomada a decisão da farsa de Mário, por exemplo. Dentre tantas nuances possíveis de ser, sentir e agir das protagonistas frente às situações de dificuldade, poucas são de fato aproveitadas ou extrapolam o que “a história oficial” oferece.

Trailer:

(Fonte: Netflix Brasil / YouTube)

Ficha técnica

Direção: Isabel Coixet

Duração: 1h53

País: Espanha

Ano: 2019

Elenco: Greta Fernández, Natalia de Molina

Gênero: Drama, Biografia

Distribuição: Netflix

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