Piripkura e o destino dos povos originários no Brasil de Jair Bolsonaro

O ano de 2018 foi particularmente especial para a produção nacional de “documentários-denúncia” sobre conflitos contemporâneos nocivos aos povos indígenas brasileiros. Tivemos Ex-Pajé denunciando o avanço (e massacre) da evangelização compulsória sobre a cultura ancestral do povo Paiter Suruí; Como Fotografei os Yanomami, expondo o tratamento preconceituoso dado pelos agentes de saúde governamentais ao povo Yanomami; e Piripkura, filme que acompanha um pouco do trabalho de agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai), evidenciando a importância da demarcação de terras e os danos irreversíveis já causados pelo Estado (ou por omissão dele)  a essas comunidades.

Esse último, dirigido por Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra, se aprofunda justamente em uma das pautas mais comentadas desde o primeiro dia de 2019: a importância da Funai e o perigo de seu enfraquecimento, agora legitimado pelo novo Governo Federal.

Não foram necessárias mais de 24 horas após a posse de Jair Bolsonaro como Presidente da República para que uma medida provisória que retira da Funai as funções de identificação, delimitação, demarcação e registro de terras indígenas fosse assinada por ele. A medida ainda prevê que tais funções sejam transferidas para o Ministério da Agricultura, agora chefiado por Tereza Cristina da Costa (DEM), representante da bancada do agronegócio na Câmara – e conhecida nos bastidores como “musa do veneno”, em alusão aos agrotóxicos. Além disso, a Funai deixa o Ministério da Justiça e passa para as mãos do Ministério dos Direitos Humanos.

O conflito de interesses é claro. Bolsonaro entregou por completo a “manutenção” dos territórios indígenas a quem mais tem interesse em exterminá-los. Se antes os conflitos no campo e nas florestas já eram violentos, agora eles têm o aval oficial do presidente e de sua turma para serem mortais – tanto para os indígenas quanto para o meio ambiente.

Os indígenas Piripkura com o agente da Funai / Divulgação

Em nota divulgada pelo portal Amazônia Real, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), principal organização indígena do país, declarou: “Bolsonaro e os coronéis da Bancada Ruralista sabem que para colocar mais terras no mercado, vão precisar inviabilizar a demarcação das terras indígenas, quilombolas, assentamentos de reforma agrária e unidades de conservação. Mas também sabem que o mundo tende para um novo modo de produzir e consumir, e que não vamos hesitar em denunciar esse governo e o agronegócio nos quatro cantos do mundo, denunciando e exigindo a adoção e o respeito às salvaguardas sociais e ambientais, necessárias ao fiel cumprimento de nossos direitos constitucionais. Estamos preparados, não vamos recuar, nem abrir mão dos direitos conquistados, e muito menos entregar nossos territórios para honrar o acordo entre Bolsonaro e seus coronéis.”

“Este governo milita contra os direitos dos povos indígenas e vem com esse viés genocida. Voltamos à estaca zero, ao Brasil de 1500, quando nos massacraram e tomaram nossos territórios. Estamos cientes que dias difíceis virão, que a violência irá imperar, mas vamos lutar e resistir. A sensação é de insegurança, mas também de luta, porque os indígenas resistiram e vamos resistir os próximos quatro anos”, afirmou Dinamam Tuxá,vice-coordenador da APIB,  à Amazônia Real.

Nesse cenário de contínuo ataque aos direitos dos povos originários, um filme como Piripkura ocupa função didática indispensável para o entendimento do momento político do país. Agora, mais do que nunca, é importante entender o que é e para que serve a Funai; e por que devemos lutar pela manutenção de suas funções.

No documentário, acompanhamos uma expedição de funcionários da instituição que partem  floresta adentro tentando encontrar Tamandua e Pakuy, sobreviventes da tribo Piripkura. Os dois vivem numa área protegida do Mato Grosso, com um machado velho e uma tocha de fogo. Seu povo foi exterminado pelos fazendeiros e grileiros da região. Na época dos ataques, Rita, única família da dupla, fugiu para um abrigo, mas os dois continuaram na floresta. Eles três são o que resta da comunidade.

Depois de sobreviver aos massacres que dizimaram seu povo, Rita passou a viver em um abrigo / Divulgação

Para garantir que a área continue protegida, a equipe precisa se encontrar com Tamadua e Pakuy a cada dois anos, para provar que eles ainda estão vivos e que a terra lhes pertence. Os dois vivem com pouco e cercados de ameaças, mas suas existências são a própria resistência.

Além de acompanhar a expedição pela floresta, o filme trata um pouco das burocracias envolvidas na demarcação de terras, traz depoimentos importantes dos funcionários da Funai sobre o comportamento dos ruralistas em relação aos indígenas e ao meio ambiente e se preocupa em traçar um paralelo riquíssimo entre a vida solitária e melancólica que Rita leva como refugiada em seu próprio país e a resistência de Tamandua e Pakuy, dois homens que se recusaram a abandonar suas terras e por isso vivem correndo perigo de vida.

Em nenhum momento, o documentário omite do público que a Funai sofre com precarizações há muito tempo. Desde o governo Dilma, um governo que prometia ser progressista, a ofensiva da bancada ruralista já ameaçava com maior força o trabalho e a soberania da Funai. Não é segredo também que desde a colonização o poder das elites rurais manda e desmanda no jogo político macro brasileiro. No entanto,  o governo Bolsonaro chega com requintes de crueldade: o discurso de ódio do novo presidente e de seus apoiadores basicamente define indígenas como aberrações.

A turma da “nova era brasileira” não sabe, e nem se preocupa em saber, como funcionam culturas que não têm a ver com seus umbigos. O presidente finge acreditar que internet e dentistas são a solução dos conflitos por terras no Brasil, bancando o próprio colonizador, querendo oferecer espelhinhos em troca de toda a riqueza que não lhe pertence. Enquanto isso, o deputado Rodrigo Amorim, eleito pelo Rio de Janeiro e parceiro de partido do presidente, diz sem constrangimentos que “Aldeia Maracanã é lixo urbano. Quem gosta de índio, vá para a Bolívia”. O tratamento desumano destinado aos povos originários na tal nova era não será mais essencialmente econômico, será também, e principalmente, ideológico.

Ver Bolsonaro entregar a Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, agora comandado por uma fundamentalista religiosa – Ministra Damares Alves, a fiscal de cores de roupas infantis – e transferir atributos fundamentais da organização para o agronegócio, tirando da Fundação o pouco poder que lhe cabe, é tragédia anunciada e imensurável para o povo brasileiro.

A resistência Piripkura / Divulgação

A tendência é que a violência aumente. De acordo com relatório “Conflitos no campo Brasil 2017”, lançado pela Comissão Pastoral da Terra, o ano de 2017 registrou o maior número de assassinatos no campo desde 2003 e foi marcado pelo aumento de massacres. Em um deles, 22  indígenas Gamela foram feridos, dois tiveram as mãos decepadas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário, “o ataque foi insuflado por políticos e ruralistas que não aceitam que os indígenas reivindicam o território que lhes pertence e sobre o qual há um documento do tempo do império. A Polícia Militar que estava próxima do local da tragédia não tomou nenhuma providência.”.

Se logo no pós-impeachment de Dilma Rousseff a violência aumentou assim, o que acontecerá agora que o Presidente da República e seus aliados não sentem o menor constrangimento em deixar claro que não se importam com vidas indígenas,  diversidade ou alteridade, além de não demonstrarem nenhuma vergonha em rifar o bem-estar dessas comunidades em prol de seus interesses particulares de poder?

Piripkura joga luz sobre a invisibilidade dos povos da floresta; apagados do imaginário popular urbano, apagados das pautas da grande mídia. Abandonados à própria sorte e destinados a serem ainda mais marginalizados em sua própria terra. Exterminados por poderes econômicos e ideológicos de elites rurais que colaboraram com o golpe de 2016 e que elegeram Bolsonaro em troca de favores. Conhecer ainda é a melhor maneira de sentir empatia, e filmes ainda são uma forma acessível de obter conhecimento.

A conta dos joguinhos de ego e poder entre Bolsonaros e ruralistas sairá cara demais para todos nós. A garantia do funcionamento de instituições como a Funai é responsabilidade nossa, coletiva. Os ataques já começaram, que os Piripkura nos sirvam de exemplo.

Assista ao trailer de Piripkura:

Fonte: Maria Farinha Filmes / YouTube

*É possível comprar ou alugar o filme Piripkura no Google Play.

Ficha técnica:

Direção: Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra

Duração: 1h22

País: Brasil

Ano: 2018

Gênero: Documentário

Distribuição: —

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