Tal como define seu diretor, Aly Muritiba, Deserto Particular é um filme sobre encontros: o encontro entre a região considerada mais conservadora do país e a considerada mais progressista, entre duas pessoas que se relacionam à distância, via aplicativo de celular, entre alguém inserido no sistema e alguém posto às margens. Mas é também, e talvez acima de tudo, um filme sobre a possibilidade de reencontro entre o Brasil, que nos últimos anos nos acostumou à tragédia generalizada, e os finais felizes.
Na história, escrita por Muritiba e Henrique dos Santos, Antonio Saboia (de Bacurau) interpreta um policial de Curitiba que acaba afastado do trabalho por ter cometido uma infração. Reservado, ele vive com o pai doente, um sargento aposentado de quem cuida com muita dedicação. Seu único alento é o relacionamento virtual que mantém com Sara (Pedro Fasanaro), uma moça do sertão da Bahia. Então, quando Sara deixa de responder suas mensagens, Daniel, meio obcecado pelo que parece estar prestes a perder, resolve cruzar o país para procurá-la.
Trata-se de uma história sobre um amor impossível e contemporâneo, que começa suspenso pela fragilidade dos laços virtuais e se expande para um estudo de contrastes e convergências entre sujeitos sociais. Uma história que se constrói em camadas, portanto. Que pode ter algo de previsível na condução sentimental/comportamental do desenrolar do romance virtual ou nos contornos gerais da abordagem da temática LGBTQIA+, mas que se destaca na elaboração das nuances dos desertos particulares de seus protagonistas.
Competindo pelo Brasil a uma indicação ao Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional, Deserto Particular carrega em essência o desejo de desacostumar o espectador à expectativa da violência.
AFETOS E PULSÕES
Não que a violência não esteja presente no filme: ela aparece como fato no dia a dia profissional de Daniel e nas experiências de vida de Sara, além de ser latente nas idealizações de Daniel sobre mulheres e no receio que Sara sente sobre conhecer pessoalmente seu relacionamento virtual. São violências comuns aos contextos de vários dos Daniéis e Saras espalhados pelo país e seria ingênuo ignorá-las, principalmente num país marcado pela violência policial e por ser, em todo o mundo, o lugar que mais mata transexuais; o país que, de uns meses pra cá, viu os noticiários serem tomados por casos de mulheres trans queimadas vivas.
Mas Muritiba decide presentear seu país com um romance. Um drama sentimental onde a violência nem é ignorada nem é protagonista. Nesse sentido, a decisão de apresentar Daniel e Sara separadamente, antes do encontro, é crucial para a consistência da trama, porque gera algum suspense na relação entre espectador e obra. Somos levados a esperar o que estamos acostumados a esperar de histórias como essas, e depois somos desmontados. Perceber-se habituado à expectativa da violência é chocante, para dizer o mínimo.
Na hora certa, o encontro dos personagens acontece como a confluência de águas turbulentas de dois afluentes do mesmo rio. Águas que já percorreram muitos caminhos, tomaram várias formas, sentiram muitos pedregulhos. Suas correntezas impulsionam mutuamente o fluxo um do outro e seguem adiante. Talvez ainda pelo mesmo percurso, talvez não. O importante é que o rio já não é o mesmo. A violência do conservadorismo tem definido como enxergamos a nós mesmos e como os outros países nos enxergam, tem enfatizado as distâncias geográficas e sociais; e aí está Deserto Particular para nos lembrar de que as águas seguem em movimento nesse rio chamado Brasil.
Os laços que Sara e Daniel carregam de uma vida inteira (o pai militar, a irmã lésbica ou bissexual, a família religiosa conservadora, o melhor amigo gay e preto, os colegas de trabalho) moldam seus rumos e conflitos até certo ponto. Mas então ocorre o clímax do filme e o tal relacionamento à distância se transforma num esbarrão improvável de realidades. Nesse momento, os protagonistas, cada um a partir de seu próprio deserto particular, são provocados pelas circunstâncias a confrontar limitações, afetos, estereótipos de masculinidade, significados de família, pulsões, identidades, machucados e desejos.
Comentando o Brasil com olhar afetuoso, embora sem condescendências, Deserto Particular realiza um exercício dramático emotivo que flui sem parecer forçado, no qual a tragédia é rejeitada e os finais felizes, que não pretendem se parecer aos clássicos dos romances românticos, voltam a ser considerados possíveis.
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Trailer
Ficha Técnica:
Direção: Aly Muritiba
Duração: 2h
País: Brasil
Ano: 2021
Elenco: Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Luthero Almeida, Thomas Aquino, Laila Garin
Gênero: Drama
Distribuição: Pandora Filmes
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