Deslembro: um filme afetuoso para tempos brutais

Joana (Jeanne Boudier) era muito pequena quando se mudou para Paris por motivos políticos. O pai morreu nas mãos da ditadura civil-militar brasileira e a mãe, Ana (Sara Antunes), exilou-se com a menina na capital francesa. Lá Joana cresceu, ganhou o padrasto Luís (Julián Marras), argentino também exilado político, um irmão de consideração e um meio-irmão. Essa reunião de vidas que foram unidas pelo destino na França forma as veias por onde circula o desenvolvimento do filme Deslembro.

Na cena que abre Deslembro, Joana, agora adolescente, está rasgando seu passaporte. A Anistia foi decretada no Brasil e Ana e Luís decidiram voltar; Ana para seu país de origem, e Luís para um pouco mais perto de casa. Mas Joana não conhece o Brasil. As memórias e os laços afetivos com o país não fazem sentido para ela. Toda sua vida, as amizades e os hábitos cotidianos foram construídos na França, afinal. Ao retornar para um lugar do qual não tem lembranças, Joana precisa aprender a se adaptar.

Dirigido e escrito por Flávia Castro, o longa-metragem estreou no último dia 20 e segue em cartaz em algumas cidades do país. Neste texto, destacamos três bons motivos para você não deixar de vê-lo nos cinemas.

UM DOS MELHORES FILMES NACIONAIS DO ANO

Certamente são muitas as qualidades de Deslembro. Poderíamos citar, por exemplo, as belas imagens, a trilha sonora contagiante e a composição de personagens cativantes e multifacetados, formados por uma riquíssima diversidade de origens, idiomas, idades e vivências. Mas nenhuma dessas qualidades estaria posta em tela se não fosse por um elemento principal: a sutileza.

‘Deslembro’/ Divulgação

Deslembro é um filme singelo, bonito e, com certeza, um dos mais imperativos do ano no quesito temática. Nele não há grandes momentos dramáticos, reviravoltas ou cenas que remetem diretamente aos horrores da ditadura. As coisas acontecem no âmbito da subjetividade de Joana e a partir de sua relação com os demais. Só  a estrutura familiar da personagem já é das coisas mais bonitas e profundas do cinema brasileiro contemporâneo. 

Nem sempre existe concordância entre todos os personagens, membros dessa família imperfeita, formada por sujeitos que vieram de outras famílias esfaceladas e que possuem diferentes bagagens. São pessoas com trajetórias individuais, desejos, medos e traumas particulares, mas que juntas formam um novo todo muito singular e cheio de amor, respeito e preocupação. 

Os conflitos se dão no dia a dia, na adaptação a uma nova rotina em um novo país, nos reencontros, no desejo de um mundo melhor e mais tranquilo. O lembrar aparece constantemente como algo inevitável; às vezes gratificante, outras vezes angustiante. Em Deslembro, a diretora faz questão, sem nunca cair em discursos óbvios, de conduzir a trama de modo a nos fazer perceber que memória histórica e coletiva é indissociável das memórias pessoais. Este é um filme, portanto, sobre a importância dos afetos, do cuidado e do não esquecer. 

MEMÓRIA E FUTURO SÃO PAUTAS FUNDAMENTAIS PARA O BRASIL 2019

Assim que chega ao Brasil, a protagonista é apresentada à avó paterna Lúcia (Eliane Giardini). É com a ajuda dessa avó que Joana recupera lembranças mais concretas sobre o pai, percebe que a memória pode pregar peças, aprende o que são presos políticos e começa a se sentir pertencente.

Deslembro passa pelas caixinhas de memórias de família, aquelas cheias de fotos antigas, bilhetes, recortes de jornal e cacarecos, para chegar à memória nacional. Assim, e aos poucos, as mudanças que antes causavam revolta em Joana dão espaço a uma profunda empatia por sua história familiar.

(Fonte: Imovision/ YouTube)

Além da sensibilidade da narrativa, o filme ganha força pela atualidade. Hoje, em meio a um caos político preocupante, que revira as feridas mal resolvidas da história da ditadura-civil militar e recupera vários de seus elementos, repaginados e a partir de novos (mas muito previsíveis) atores, falar sobre memória é fundamental. 

A protagonista opera como uma boa metáfora para o país: suas angústias sobre passado e presente dizem muito sobre as angústias coletivas do Brasil 2019. Deslembrar é não compreender. Não lembrar abre espaço para medo e confusão. Por isso Flávia Castro, além de realizar um belo filme do ponto de vista artístico, nos aponta um caminho: somente depois de lembrar, encerrar o que ficou em aberto e reconstruir coletivamente é possível seguir em frente. 

PROTAGONISMO FEMININO 

Na frente das câmeras, o longa-metragem de Castro é protagonizado por três gerações de mulheres – apesar do destaque de Joana, que é quem transita entre os países e o passado e presente com mais questões. 

Lúcia é uma mulher moderna, altiva, que encarou o luto pela perda do filho, presenciou as atrocidades da ditadura de perto e se apegou na esperança por justiça. Ana, por sua vez, cuida de três crianças com dedicação, sem abandonar seus ideais, mas fazendo concessões em nome da família. E Joana é uma adolescente percebendo-se no mundo, se apaixonando, fazendo amigos, lidando com a família como qualquer outra jovem comum, mas marcada indiretamente pelo autoritarismo. As três se complementam e amparam.

Joana (Jeanne Boudier)/ Divulgação

Vale destacar também o relacionamento de Ana e Luís. Trata-se de uma relação de muito afeto e parceria, mas que, em determinado momento, não escapa de ser atravessada por questões de gênero. Daí o filme tira material para falar das mulheres chefes de família em períodos de exceção. 

Há ainda uma equipe técnica de mulheres por trás das câmeras. A própria diretora possui um história pessoal com a ditadura. Em entrevista ao Mulher no Cinema, ela conta que seu pai, o jornalista e militante Celso Castro, foi encontrado morto em outubro de 1984 no apartamento de um ex-oficial nazista. Flávia trabalhou a própria memória e investigou o caso do pai no documentário Diário de uma Busca (2010).

Deslembro é, ao final, um filme generoso com o público, um afago poético e agridoce em meio à tempestade; não exatamente fácil, mas um sinal verde para seguirmos em frente, sempre lembrando de revisitar o passado. 

Leia também: “Café com Canela: a ausência de diretoras negras no cinema nacional e a militância de um filme afetivo”.

Trailer:

(Fonte: Imovision/ YouTube)

Ficha técnica

Direção: Flávia Castro

Duração: 1h36

País: Brasil, França, Qatar

Ano: 2019

Elenco: Jeanne Boudier, Eliane Giardini, Sara Antunes, Julián Marras, Jesuita Barbosa

Gênero: Drama

Distribuição: Imovision

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