Eu Não Sou uma Bruxa: a perseguição contra as mulheres nunca parou

A caça às bruxas nunca terminou, ela só adquiriu novas formas e propósitos. É o que nos mostra a diretora Rungano Nyoni em Eu Não Sou uma Bruxa, seu longa-metragem de estreia e representante da Inglaterra no Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro. Rodado inteiramente na Zâmbia (país de origem de Nyoni, que hoje vive na Inglaterra), o filme acompanha o destino da pequena Shula (Margaret Mulubwa) após uma acusação de bruxaria.

Aos oito anos de idade, a criança, ao que tudo indica órfã, é levada até uma delegacia e apontada como bruxa por membros de sua comunidade. Eles não sabem nada sobre as origens dela e, por isso, têm medo. Como em um processo de inquisição contemporâneo, Shula é rapidamente julgada e conduzida pelo Sr. Banda (Henry B.J. Phiri), um agente do governo, até um campo de concentração de bruxas.

Campo de concentração de bruxas/ Divulgação

Ali Shula encontra mulheres que, como ela, foram sentenciadas pelos motivos mais estapafúrdios. Sr. Banda dá duas opções à criança: ou ela admite ser uma bruxa, ou torna-se uma cabra; e assim a protagonista passa a ser a bruxa mais jovem do campo.

A princípio, a sinopse pode parecer um tanto quanto fantasiosa, mas a diretora aposta com força no realismo ao explorar as motivações econômicas e políticas da existência de campos de concentração de mulheres em algumas comunidades. Isoladas, as tais bruxas transformam-se em mão de obra escrava do governo e espetáculo para atrair uma espécie de turismo místico internacional.

Então, quando não estão fazendo trabalhos forçados em plantações ou pedreiras, elas são obrigadas a performar entretenimento para turistas atraídos pelo exótico.  De acordo com a denúncia ficcional criada por Nyoni, é por isso que o governo estimularia, de forma discreta, o imaginário coletivo que estigmatiza mulheres: bruxas perseguidas são a engrenagem de alguns mercados.

‘Eu não sou uma bruxa’ / Divulgação

Outro aspecto de grande relevância em Eu Não Sou uma Bruxa é o desenvolvimento das relações que Shula estabelece com as mulheres do campo de concentração, com uma mulher bruxa de classe social mais privilegiada e com o Sr Banda.  Entre este último e Shula surge uma relação de codependência: a garota precisa dele para sobreviver e ele precisa da jovem bruxa para, através do espetáculo, promover sua carreira pública.

No campo de concentração, o grupo de mulheres, claro, não é homogêneo. Enquanto algumas acolhem Shula com afeto maternal, outras enxergam na pequena bruxa uma oportunidade de tirar vantagem. A criança também interage com uma bruxa abastada, que não vive no campo, mas que ainda carrega o estigma de um dia ter sido acusada e, por causa disso, convive também com limitações e abusos. Toda essa variação de personalidades, idades e contextos sociais enriquece admiravelmente a diversidade das mulheres do filme e contribui diretamente com a qualidade da narrativa.

Já a carga simbólica da obra, que pode até ser considerada fantástica em certo grau, fica por conta da forma como as mulheres bruxas são “acorrentadas”. Em vez de óbvias correntes de metal, cada prisioneira vive condenada a um carretel de fita de pano. Fitas aparentemente delicadas, mas absolutamente repressivas. O carretel é fixado em determinado lugar e elas só podem circular até onde vai o comprimento da fita. É isso, acompanhado de inconscientes moldados para acreditarem que pertencem agora àquele lugar, que as impede de fugir.

Shula (Margaret Mulubwa) presa pelas costas por uma fita/ Divulgação

Impressiona como uma fita pode tomar proporções tão poéticas e brutais em tela. Um único objeto, posto em contexto totalmente inesperado, dá todo o tom que a diretora desejou empregar em seu filme. Uma fita delineia os limites entre liberdade e ausência de perspectiva. É dessa simples escolha de imagem que brota o fantástico, aqui representando o horror da exploração e dos mais variados tipos de violência, em meio ao realismo das questões de gênero e de trabalho.

Resumindo, Eu Não Sou uma Bruxa é um filme sobre a infância negada; cuja protagonista passou seus poucos anos de vida sendo sugada, conduzida e torturada por engrenagens que não lhe permitiram afeto, educação ou recreação. Essa é a história de Shula, mas, para além disso, é a história de muitas meninas que não podem ser só meninas.

Trailer:

(Fonte: Imovision/ YouTube)

Ficha técnica

Direção: Rungano Nyoni

Duração: 1h34

País: Inglaterra, França, Zâmbia

Ano: 2018

Elenco: Margaret Mulubwa, Henry B.J. Phiri, Gloria Huwiler

Gênero: Drama

Distribuição: Imovision

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