La Jauría: a caça às bruxas contemporânea

[ATENÇÃO: La Jauría contém gatilhos sobre violência sexual!]

No formato, uma série policial feita nos moldes da maioria das produções do gênero. No conteúdo, um Chile em convulsão. Com roteiro final e direção geral da argentina Lucia Puenzo, e disponibilizada no Brasil pelo Prime Video, La Jauría (“a matilha”, em português) condensa via ficção a atualidade dos conflitos entre o levante feminista que nos últimos anos se espalhou pelo continente contra a violência de gênero e pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito e a ordem conservadora latino-americana, que sempre teve na misoginia um alicerce fundamental da manutenção das estruturas de poder locais. 

Imagem: divulgação

O desaparecimento da estudante Blanca Ibarra (Antonia Giesen), de 17 anos, serve de estopim da narrativa. Líder de um coletivo feminista organizado por alunas de uma escola católica de elite contra os abusos de um professor, a garota é sequestrada, violentada e humilhada na internet. Seus algozes: homens que planejam ataques através de um jogo online chamado “a matilha”, um fórum onde misóginos, em bando, preparam vingança contra mulheres que se cansaram de ter medo. Uma espécie de facção na qual, para ingressar, os indivíduos devem atacar suas presas, num ritual iniciático que envolve pactos de cooperação e silêncio.

Inicia-se então uma operação policial frenética de busca por Blanca. Aos poucos, a investigação destrincha o modus operandi do jogo que atrai homens de todas as idades e que diz muito sobre a perversão tolerada e institucionalizada, a que permite perseguir e destruir mulheres – embora, na série, pelo menos por enquanto, essas mulheres sejam majoritariamente brancas e estejam em situação financeira confortável.

Estão no elenco estrelas como o cubano Alberto Guerra e as chilenas Daniela Vega (Uma Mulher Fantástica), Antonia Zegers, María Gracia Omegna, Paula Luchsinger e Mariana Di Girólamo (Ema). A rapper Ana Tijoux, além de interpretar a canção original “No estamos solas”, aparece em tela numa participação especial. O cineasta Pablo Larraín é produtor executivo. 

DANIELA VEGA

Conhecida internacionalmente desde que Uma Mulher Fantástica venceu o Oscar 2018 de Melhor Filme Internacional, tornando-se o primeiro longa protagonizado por uma pessoa transexual a levar uma estatueta, a atriz Daniela Vega rouba a cena em La Jauría e mais uma vez comprova a urgência da presença de diversidade no setor audiovisual.

“Daniela Vega en La Jauría” / Divulgação

Em 2018, Vega foi gigante ao apontar para a importância de personagens transexuais serem interpretados por atores e atrizes trans. Agora, no papel de uma das policiais responsáveis pela investigação do desaparecimento de Blanca Ibarra, uma mulher cheia de conflitos pessoais,  a discussão levantada é outra: pessoas trans também têm o direito de contar histórias que não sejam sobre transexualidade.

NENHUMA A MENOS

Há duas grandes caçadas simultâneas acontecendo em La Jauría. A primeira, policial, desenvolvida a partir de chavões de gênero e voltada à esfera do entretenimento – trata-se, afinal, de um formato facilmente absorvido pelo mercado. A segunda, uma caça às bruxas contemporânea, que fala sobre o sistema patriarcal chileno, moldado por seus empresários, políticos, religiosos e militares, beneficiários diretos da guerra contra as mulheres – um sistema comum a toda a América Latina, aliás.

Imagem: divulgação

Com premissa inspirada em um caso espanhol de estupro coletivo, conhecido como La Manada, a série chilena se vale de sua grande quantidade de subtramas para desenvolver com alguma complexidade os pormenores de como o poder se manifesta quando o assunto é gênero. Não por acaso, a trama é incisiva ao identificar os crimes cometidos contra Blanca como exibições de poder contrárias à maré verde; recados enviados a quem desafia a ordem.

Em uma passagem do livro “La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez”, a antropóloga e feminista argentina Rita Laura Segato resume bem a natureza dos conflitos de uma história como La Jauría. Ela escreve: “a masculinidade é um status condicionado a sua obtenção – que deve ser reafirmada com uma certa regularidade ao longo da vida, mediante um processo de aprovação ou conquista”. 

No cenário abordado pela série, portanto, vítimas como Blanca seriam tributos que homens oferecem a outros homens como performance de poder, em troca de ter suas masculinidades revalidadas diante do grupo de iguais. Existe, claro, o ódio pelo que Blancas representam, mas o jogo, no fim, vai além do ódio, caracterizando todo um sistema de comunicação. Um pacto de sangue feito com o sangue de vítimas já sabidamente desumanizadas pela comunidade – e por isso a impunidade.

A SÉRIE 

La Jauría é competente. Como dito antes, nada original no quesito forma, mas significativa em conteúdo. Essa junção de fórmula popular (séries policiais se proliferaram em larga escala pelo mercado mundial nos últimos anos) e conteúdo indigesto, porém, costuma ser arriscada.

(Fonte: Amazon Prime Video LATAM/ YouTube)

Até aqui, a receita foi funcional: existe, nessa primeira temporada, equilíbrio suficiente entre as demandas do entretenimento e o trato dado a assuntos que atualmente convulsionam o cerne da sociedade chilena. Por outro lado, um assunto tão delicado como violência de gênero sempre exige atenção redobrada em produções ambiciosas, para evitar que seja atropelado por armadilhas (ou imposições) comuns das fórmulas. 

Isso porque há na contação audiovisual de histórias uma linha muito tênue separando o registro de imagens de violência como denúncia ou debate do registro como espetáculo de apelação. La Jauría não ultrapassa tais limites, mas opta por tratar do sadismo das manifestações de poder e, por isso, acaba caminhando próxima a eles. Além do mais, a própria condição de clássica série policial impõe algumas limitações às intenções narrativas da obra: a adrenalina das perseguições e das reviravoltas, por exemplo, “precisa” ser oferecida ao espectador como elemento essencial de engajamento. Nesse processo, perde-se parte do encanto do desenvolvimento da história contada: os núcleos e os métodos perigam soar batidos e os recortes de perspectivas, previsíveis. Então, ainda que realizada por uma equipe notável, a partir de uma temática de alta efervescência, a produção pouco se mostra interessada em romper com o esquema narrativo que invariavelmente privilegia o ritmo de uma investigação padrão em detrimento de qualquer outra virtude da trama – uma decisão comercial, claro.

De qualquer modo, La Jauría transpira conjuntura – na frente e atrás das câmeras, criativa ou comercialmente falando. Os paralelos traçados entre o sistema do jogo virtual e o das facções que tomam territórios e corpos pela América Latina afora falam do ontem e do hoje; os lenços verdes marcam um tempo e um espaço de rupturas; Daniela Vega é um acontecimento; e o gancho deixado no fim da temporada indica a sororidade e a combatividade organizada como temas ainda mais presentes nos episódios que estão por vir.

Assim, fica o desejo de que a série continue destinando espaço imaginativo adequado aos detalhes de seus entendimentos de mundo – principalmente agora, após ter deixado a exclusividade da televisão chilena, espalhando-se pelos vários países atendidos pela Amazon Prime Video. Tomara também que definições tolas como “série policial para mulheres” não restrinjam o alcance de uma produção tão completamente fruto de seu tempo.

Ficha técnica 

Criação: Sergio Castro San Martín, Enrique Videla

País: Chile

Ano: 2020

Elenco: Claudia Di Girolamo, Mariana Di Girolamo, Daniela Vega, Antonia Zegers, María Gracia Omegna, Alfredo Castro, Luis Gnecco, Francisco Reyes, Amparo Noguera, Daniel Muñoz, Marcelo Alonso, Alberto Guerra, Antonia Giesen

Gênero: Drama, Policial

Distribuição: Prime Video

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