Quando Ordem na Casa com Marie Kondo, reality show sobre a organização em lares domésticos, estreou na Netflix (em 1º de janeiro deste ano), a internet logo tratou de impulsionar sua popularidade. Isso porque a personalidade otimista e os métodos não convencionais da especialista em arrumação pessoal surpreenderam as pessoas – e também alguns veículos da grande mídia –, seja positivamente ou não (clique aqui para ler mais).
Marie Kondo é uma japonesa de 34 anos que, famosa pela criação do método KonMari de organização, ganhou seu próprio programa de televisão pela Netflix. Em Ordem na Casa, a especialista visita diversos lares estadunidenses (de mesma nacionalidade do reality) acompanhada de uma tradutora linguística, no intuito de reestruturar a disposição dos objetos e, em resumo, toda a dinâmica de suas casas.
Quanto ao KonMari, este é composto por cinco fases principais: roupas, livros, papéis, Komono (que seria banheiros, cozinha, garagem e itens variados) e, por fim, itens de valor sentimental. Assim, famílias de diferentes etnias, orientações sexuais e hierarquias são auxiliadas pela japonesa a modificarem seus lares e, por conseguinte, suas vidas.
AS FAMÍLIAS
Na – feliz – onda de dar visibilidade a grupos socialmente oprimidos, a plataforma de streaming traz personagens interessantes para o centro da série. A cada episódio, acompanhamos uma história distinta; pessoas com motivações diferentes para manter a casa em ordem e ceder aos cuidados de Kondo. Dentre os personagens está uma família de integrantes negros e pais jovens, dois casais homoafetivos, uma mulher viúva de meia-idade, um lar cuja mãe é paquistanesa e um casal de aposentados.
Dessa forma, o programa de TV propõe-se não somente a vislumbrar-nos com a beleza de gavetas organizadas e lençóis dobrados, mas, principalmente, a fazer com que criemos uma consciência sobre a importância psicológica de um lar arrumado.
Agora, já por debaixo dos panos, deparamo-nos com algo muito mais sutil e que, talvez, não seja propositadamente explorado: as relações de poder entre os familiares. Basicamente, a grande maioria dos clãs particulares, mesmo aqueles que são financeiramente liderados por homens, tem como força central o apelo matriarcal (ou melhor, em âmbito doméstico). E, nesse caso, a figura feminina não teria a palavra-final por vontade deliberada, mas, sim, por imposição de costumes solidificados.
AO FINAL, É SOBRE PODER
São inúmeras as vezes na série em que, dentro de famílias com lideranças sexualmente opostas, a pessoa tida como “a mãe do grupo” sente-se frustrada por não controlar exatamente tudo aquilo que está ao seu redor. Quando o marido chega do trabalho, ao final do dia, a esposa é socialmente conduzida, por mais moderna que ela possa ser, a ter as coisas minimamente sob controle em casa – o que inclui a plenitude da educação dos filhos e a higiene impecável do lar.
Esse tipo de pensamento tem, sim, raízes no American way of life dos anos 1950 que, ainda que reduzido, vigora no país norte-americano. E, para além de terras estrangeiras, essa dinâmica familiar é comum em quaisquer continentes; incluindo no latino-americano.
Independentemente de serem grupos modernos, e que vão de desencontro à popular “família tradicional” americana, os clãs de Ordem na Casa têm, em comum com esse padrão arcaico, uma estrutura hierárquica conservadora. Afinal, de que adianta pais totalmente abertos com seus filhos, se a mãe do grupo é tratada como uma espécie de governanta?
SOBRECARGA
Além disso, a ideia de que o pai tem de fazer as atividades fisicamente maçantes cai por terra, uma vez que encontramos uma mulher dona de casa. E tudo isso – tanto as divisões de tarefas segundo a suposta capacidade biológica de casa sexo, quanto o fato de que as mulheres acabam recebendo quase toda a carga emocional – está longe de ser certo.
Dessa forma, ainda que o reality show de Kondo não destrinche as relações de poder diretamente ou ofereça alternativas práticas para tanto, ele é capaz de expor algo secular e que insistimos em não enxergar. Os danos psicológicos de uma casa desarrumada são, em geral – e pelo o que podemos avaliar com o programa –, mais fortes em “mulheres-mãe”. É realmente incômodo assisti-las tão vulneráveis e frustradas; principalmente quando esperam realizar algo que, na verdade, não precisam (como, por exemplo, saber onde estão as coisas de cada um dos membros da casa).
Portanto, seria interessante que, antes de convidar Marie Kondo para ajudá-los, os grupos familiares repensassem as estruturas de poder que são vigentes em suas casas. Desde que as limitações de um determinado indivíduo sejam respeitadas, as tarefas domésticas sejam igualmente dividas e a saúde de todos da família priorizada, a organização de bens materiais é um mero item secundário. E é isso que Marie tem de melhor a ensinar-nos.
*A primeira temporada completa de Ordem na Casa com Marie Kondo está disponível, somente na Netflix.
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