Em Selva Trágica (Netflix), a floresta maia é protagonista

A jovem Agnes (Indira Andrewin) foge para dentro da floresta, tentando escapar de um casamento forçado com um senhor de terras inglês. Nessa mesma floresta, um grupo de trabalhadores belizenhos ganha a vida extraindo látex das árvores. São homens que passam por longos períodos de isolamento, sendo superexplorados por quem os paga e superexplorando a natureza. É ali, nas profundezas da floresta maia dos anos 1920, fronteira entre México e Belize, que a diretora mexicana Yulene Olaizola ambienta Selva Trágica

Imagem: divulgação

A imagem de uma árvore mutilada sangrando o látex que enriquecerá alguém abre o filme. Em seguida, um narrador prenuncia:“Pobre de você que não entende os mistérios da selva. Aprenda a escutar o que não pode ver e mantenha sempre os pés no chão. Não seja seduzido pelo doce néctar dela”. A floresta que muito dá também muito tira, ele alerta. O lugar, afinal, tem seus próprios mistérios, embora pareça terra sem lei para aqueles que já vivem absortos em rotinas de violências naturalizadas pelas dinâmicas de exploração.

A certa altura, Agnes e os seringueiros se encontram. A comunicação é impossível, pois a garota só fala inglês. Eles então decidem mantê-la refém, a fim de usá-la como moeda de troca num possível encontro inconveniente com os seringueiros ingleses – com quem disputam zonas de exploração.

Em pouco tempo, Agnes se torna vítima das tensões e dos desejos do grupo de homens, o que acaba despertando Xtabay. Na mitologia maia, Xtabay era conhecida como deusa protetora dos suicidas. Depois, com a chegada do cristianismo, transformou-se numa demônia que atrai homens à morte. No filme, ela atua como uma espécie de força de autorregulação da floresta. 

Embebido em lirismo, Selva Trágica encontra nas sutilezas do fantástico sua forma de expressar algumas das marcas do processo de colonização na América Central.

AGNES, A FLORESTA E O FEMININO

Ao espectador acidental, o filme, disponibilizado no vasto catálogo da Netflix, pode parecer enfadonho. A ação demora a alcançar o clímax, porque o trabalho é feito a partir do poder das sugestões, com diálogos pontuais.

Selva Trágica/ Divulgação

Tudo começa com Agnes vestida de branco, perambulando ingênua sobre seu entorno. À medida em que se embrenha na mata, perseguida pelos jagunços do noivo inglês e depois sequestrada pelos seringueiros, porém, a personagem se integra ao ambiente. Assim, através das figuras de Agnes e Xtabay, Olaizola apresenta a selva como uma entidade em comunhão com o feminino.

Nesse caso, é o feminino, com rosto de uma jovem negra e latina, que aparece na base da pirâmide das opressões. Entretanto, no cruzamento do lirismo com a tragédia, ele encontra sua forma de retomar os próprios fluxos. Já os homens, que na selva trabalham e que na selva se descuidam, terminam também sendo vítimas das violências das quais fazem parte. As estruturas não se movem porque não são eles os que enriquecem com a borracha enquanto atividade econômica,  mas são eles, os trabalhadores pobres e quase escravizados, que têm somente suas performances de masculinidade como poder, os consumidos pelo processo.

No fim, a tragédia do título se manifesta justamente nos rastros do colonialismo, nas mazelas das relações humanas, no desrespeito aos limites da natureza e na dependência econômica dos trabalhadores do látex. Em paralelo, a sensibilidade do realismo mágico revela uma floresta que, em sintonia com a deusa demonizada da mitologia iucateca, se protege como pode.

Selva Trágica foi vencedor de dois prêmios no 77º Festival de Veneza. Melhor Direção, por parte do júri da Crítica Independente, e Melhor Filme Estrangeiro com interesse social. 

Leia também: “La Llorona: memória e realismo mágico”

Ficha Técnica:

Direção: Yulene Olaizola

Duração: 1h36

País: México

Ano: 2020

Elenco: Indira Rubie Andrewin, Gilberto Barraza, Mariano Tun Xool, Gabino Rodríguez, Eligio Meléndez, Mario Canché, Dale Carley

Gênero: Drama

Distribuição: Netflix

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