Viaje a los Pueblos Fumigados dialoga com um Brasil que não se importa com diversidade e biodiversidade

Fernando Solanas é uma lenda do cinema latino-americano. Nos anos 1960, realizou o clássico La Hora de Los Hornos, documentário que denunciava o neocolonialismo e a violência em uma América Latina tomada por ditaduras.  Hoje, aos 82 anos, o cineasta argentino divide seu tempo entre o ativismo do cinema político e um cargo de senador em seu país – onde também preside o comitê de Meio Ambiente do Senado. Seu mais recente trabalho, Viaje a los Pueblos Fumigados (Viagem aos povos fumigados, em tradução livre), é também uma denúncia.

Dessa vez, Solanas literalmente viaja pelas zonas rurais da Argentina para conversar com gente que é diretamente afetada pelo processo de fumigação. Fumigar significa aplicar pesticidas gasosos. Esse é o processo adotado pelo agronegócio para “proteger” suas plantações  – principalmente as monoculturas de soja transgênica, principal produto de exportação da Argentina.

Fernando Solanas, diretor de ‘Viaje a los Pueblos Fumigados’ / Divulgação

Aviões carregados de veneno sobrevoam zonas rurais espalhando os produtos tóxicos. Às vezes em maior quantidade do que o recomendado pelo governo argentino, outras vezes passando mais próximos das comunidades rurais do que o estipulado por lei. Na prática, comunidades inteiras de camponeses e indígenas passaram a ser fumigadas junto com as plantações.

Durante a década de 1990, quando o procedimento começou a ser adotado no país por empresas de cultivo de transgênicos como a Monsanto, muita gente era atingida pelos vapores venenosos ao sair de casa para ver o que estava acontecendo e acompanhar o “desfile de aviõezinhos”. Desde então, solos, água e ar são constantemente contaminados, provocando todo tipo de doenças (problemas de pele, respiratórios, tumores, deficiências, nascimentos de crianças malformadas) e até mortes.

Para além das enfermidades causadas pela fumigação, Solanas se preocupa também em entrevistar pessoas que possam falar sobre direito à terra, garantia de dignidade aos povos originários, sobre agricultura familiar e sustentável, alterações de fauna e flora e veneno nos alimentos que consumimos (um tipo de contaminação indireta que acomete também as zonas urbanas).

Pino, como é carinhosamente chamado o diretor de Viaje a los Pueblos Fumigados, não faz questão de ouvir os dois lados da problemática dos agrotóxicos. Seu objetivo é claro: denunciar os prejuízos sociais, políticos, e econômicos causados pelo poder do agronegócio e de agrotóxicos que, a longo prazo, comprometem o desenvolvimento do país.

‘Viaje a los Pueblos Fumigados’ / Divulgação

Solanas faz, como sempre, um cinema engajado. Para isso, ele entrevista tanto pessoas simples e vulneráveis, que vivem em contato direto com os venenos pulverizados sobre suas casas, escolas, e cabeças, quanto especialistas, médicos e pesquisadores. Seu intuito é provar, da forma mais didática possível – e como se fosse um professor tentando ensinar com muita empatia-, que apelar para uma economia baseada em venenos e desrespeito aos direitos humanos pode ser lucrativo a curto prazo, mas muito perigoso para o futuro.

Para funcionar, a dinâmica econômica denunciada por Solanas gira em torno dos interesses de determinados poderes (grandes proprietários de terras e pistoleiros que fazem o que querem, sem reprimendas da lei) e envolve sementes alteradas em laboratórios que demandam certos venenos para o cultivo, monoculturas, desmatamentos, poluição, desgaste de solo, trabalho escravo, substituição de mão de obra remunerada por máquinas, ataque às terras demarcadas, mortes no campo (por doenças causadas pelos venenos e por violência), extermínio de comunidades, perda de biodiversidade. É uma dinâmica que não tem como dar certo. É a economia da destruição.

Viaje a los Pueblos Fumigados dialoga também  – e lamentavelmente – com a realidade do Brasil, já que os setores conservadores da sociedade brasileira saíram oficialmente vencedores da última eleição presidencial.

Imagem: divulgação

Alinhado às elites econômicas e sociais, o agronegócio, conhecido na política brasileira como bancada ruralista, não para de ganhar força. Jair Bolsonaro ainda nem assumiu seu cargo, mas bastou ser eleito para deixar claro que serve aos interesses dos ruralistas brasileiros e que despreza não somente a diversidade humana, mas também a importância das demandas ambientais num país ainda rico em biodiversidade como o Brasil.

Além de já ter declarado que é contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas, o futuro presidente anunciou Tereza Cristina (DEM-MS) como Ministra da Agricultura de seu governo. Conhecida como “musa do veneno”, a líder da bancada ruralista antecipou “que agrotóxicos terão ‘muito espaço’ em sua gestão”, como aponta reportagem do jornal Brasil de Fato.

É bem possível, então, que as reflexões propostas por Fernando Solanas em seu novo trabalho entrem de vez para a lista de pautas que as forças progressistas  brasileiras precisarão defender com afinco nos próximos anos. Nesse cenário, Viaje a los Pueblos Fumigados é uma obra de extrema importância, e serve como lição e ponto de partida para o futuro.

 

* O documentário chegou ao Brasil na programação da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ainda não tem previsão de estreia comercial.

** Este texto faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

 

Ficha técnica

Direção: Fernando Solanas

Duração: 1h37

País: Argentina

Ano: 2018

Gênero: Documentário

Distribuição: Ainda sem distribuidora no Brasil.

 

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