Boca a Boca: a distopia conservadora brasileira em azul e rosa

Na pequena cidade fictícia de Progresso, localizada no centro-oeste brasileiro, um vírus transmitido pelo beijo tem contaminado adolescentes. A doença provoca manchas pelo corpo e deixa os infectados em um estado letárgico quase sobrenatural. Bel, primeira vítima da pandemia, é o estopim das crises que se instalam na comunidade quando esta, extremamente apegada a regras e implicitamente autoritária, passa a ser desafiada pelo desconhecido. Com o primeiro contágio, portanto, tem início a temporada de estreia de Boca a Boca, série brasileira original Netflix criada por Esmir Filho.

 “NÓS” E “ELES”

Progresso é uma amostra de Brasil. Destacado para biópsia, o pedaço de tecido social examinado pela narrativa de Filho, e protagonizado pelos adolescentes Alex (Caio Horowicz), Chico (Michel Joelsas) e Fran (Iza Moreira), amigos da paciente zero, emerge na tela em tons neons e psicodélicos, ganhando também contornos do horror. 

‘Boca a Boca’/ Divulgação

A rápida propagação da “doença do beijo” na cidade, interpretada por todos como perda de controle, logo gera medo e estigma. Em Progresso, afinal, impera um generalizado sentimento de necessidade de ordem. É assim na escola modelo local, comandada pela rígida diretora Guiomar (Denise Fraga). E é assim nas relações de trabalho, moldadas pelas hierarquias das fazendas de criação de gado do interior do país, onde fazendeiros ditam as regras da economia e da sociabilidade da região e “herdam” empregados de geração em geração; traços de uma sociedade que não acertou contas com seu passado colonial.

Então, perturbada por algo extraordinariamente inexplicável, a aparentemente harmoniosa normalidade do cotidiano de Progresso cai por terra. Aos poucos, os desequilíbrios do convívio coletivo são expostos . De um lado, adultos desnorteados pretendem se proteger do que chamam de “seita”, provável causadora da epidemia, impondo limites, fronteiras e padrões de comportamento aos mais novos. De outro, em plena fase de experimentação e formação de personalidade, rodeados por telas e interatividade, jovens assumem diferentes posturas sobre como encarar a ameaçadora nova situação.

Mas além do embate geracional típico de enredos sobre o amadurecer, dramático e espantoso por si só, Boca a Boca conta ainda com um mistério sobre os “outros”. Parece haver na cidade uma antiga divisão entre o grupo urbano e “eles”, as pessoas da aldeia. Pouco sabemos sobre essas pessoas, e o desenrolar do rompimento da convivência entre os grupos deve gerar conteúdo para futuras temporadas.

AZUL E ROSA: CORES DA DISTOPIA BRASILEIRA

Por enquanto, o que sabemos é que a epidemia serve como metáfora para tratar de tabus da juventude (sexualidade, identidade, doenças sexualmente transmissíveis, discriminações, diferenças de classe, família). Não por acaso, adoecem mais rápido aqueles que de alguma forma evitam os próprios sentimentos em nome da inércia da ordem. Os que bancam abertamente o enfrentamento dos conflitos, em contrapartida, lidam com outros tipos de consequência.

Imagem: divulgação

Neste contexto, o azul e o rosa se destacam como cartela de cores ideal. Identidade visual certeira para a distopia conservadora brasileira que evita lidar com os entretons da realidade pregando o “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”. Não surpreende, portanto, que a estética neon delirante da série tenha chamado tanta atenção do público.

E se Esmir Filho é feliz em estabelecer os dilemas do crescimento de indivíduos inseridos em recortes muito assertivos de Brasil contemporâneo, Juliana Rojas, com quem ele divide o roteiro e a direção dos episódios, é habilidosa na arte das sugestões alegóricas. 

Tendo dirigido ótimos títulos do cinema nacional de terror dos últimos anos (entre eles, Sinfonia da Necrópole e As Boas Maneiras), Rojas deixa muitas das marcas de seu trabalho na produção original Netflix. A começar pela combinação entre elementos visuais do horror e o poder da sugestão no trato do desconhecido. No curta-metragem Um Ramo (2007), por exemplo, a diretora já havia abordado o tema perda de controle. 

O resultado da parceria entre realizadores impressiona positivamente. Uma vez posta em andamento, a condução dos choques de perspectiva e da complexidade dos afetos é levada também de forma sensorial – graças ao trabalho de composição e tratamento das cores, da trilha sonora impecável e da grandiosidade do elenco. Cria-se, assim, uma atmosfera imersiva e provocadora em torno do retrato do insólito realismo brasileiro.

O INÍCIO 

Tem sido difícil encontrar produções brasileiras da Netflix que se pareçam mais com exercícios criativos de forma e conteúdo do que com produtos em prateleiras. Nesse sentido, a autoralidade de Boca a Boca é uma grata surpresa. 

‘Boca a Boca’/ Divulgação

Afinal, mais do que uma profecia de seu criador sobre a vulnerabilidade humana frente a epidemias de novos vírus, algo que ironicamente estamos vivendo no momento, a série se comporta como um “coming-of-age com toques de horror e fantasia”, magnético e atento às nuances de um país que padece pela apatia generalizada e que exibe ao mundo suas manchas perturbadoras, causadas pelo encalhamento de assuntos mal resolvidos. 

Exitosa e fluida na apresentação de personagens e conflitos, a primeira temporada de Boca a Boca é composta por seis episódios e peca apenas por não avançar para muito além de um primeiro momento de introdução. Caberá às próximas temporadas, então, dar conta do desenrolar dos arcos abertos. Torçamos para que a série seja cuidadosa no quesito planejamento.

Trailer:
( Fonte: Netflix Brasil/ YouTube)

Ficha técnica 

Criação: Esmir Filho

País: Brasil

Ano: 2020

Elenco: Michel Joelsas, Iza Moreira, Caio Horowicz, Thomás Aquino, Denise Fraga, Kevin Vechiatto, Grace Passô, Bruno Garcia, Luana Nastas, Flávio Tolezani

Gênero: Drama

Distribuição: Netflix

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