José Alberto Mujica já foi guerrilheiro, preso político, torturado por um regime autoritário, presidente e senador do Uruguai e, mais recentemente, figura central de dois importantes filmes: Uma Noite de 12 anos, longa de ficção que retrata sua trajetória como sequestrado político da ditadura civil-militar uruguaia; e Pepe, Uma Vida Suprema, documentário que acompanha seus últimos momentos como Presidente da República.
Aos 83 anos e com aparência de vovôzinho carismático, Mujica é visto hoje como uma das lideranças políticas progressistas mais admiradas e importantes da América Latina – quiçá do mundo. Mas, para chegar onde chegou, Pepe, como é carinhosamente chamado, percorreu um longo caminho de busca pela compreensão das contradições humanas – individuais e coletivas.
Então, nenhum outro momento seria tão propício para a circulação de filmes sobre o ex- presidente do Uruguai quanto o que vivemos atualmente. Em 2018, enquanto o pêndulo da história se movia e o mundo presenciava um avanço de forças conservadoras neoliberais, autoritárias e retrógradas, o cinema reverenciava Pepe Mujica, homem que já circulou entre as esferas mais altas de poder, mas que nunca abriu mão de uma vida simples no sítio e de seu fusquinha azul – postura que lhe rendeu certa fama.
Mujica optou pela política do afeto, do coletivo, do diálogo, do social e da autoestima latino-americana. Para nossa sorte, agora seus posicionamentos e ensinamentos estão registrados pela sétima arte e ecoarão pela história através dos dois filmes que comentaremos a seguir.
UMA NOITE DE 12 ANOS
Era uma noite de 1973 quando três presos políticos, militantes Tupamaros (grupo de resistência armada que lutava contra a ditadura civil-militar do Uruguai), foram retirados de suas celas pelos militares e mantidos sequestrados pelo Estado durante 12 anos. Eram eles: José Mujica (Antonio de la Torre), Mauricio Rosencof (Chino Darín) e Eleuterio Fernández Huidobro (Alfonso Tort).
Esse é o ponto de partida de Uma Noite de 12 anos, filme dirigido por Álvaro Brechner que retrata Mujica, Rosencof e Huidobro durante os vários anos em que foram submetidos a torturas psicológicas e físicas; privados de todos os seus direitos como cidadãos.
Os três Tupamaros permaneceram isolados em solitárias insalubres, sem quaisquer condições minimamente dignas de sobrevivência, e proibidos de falar até mesmo com seus sequestradores. Durante mais de uma década, eles se apegaram a toda e qualquer migalha de humanidade para permanecerem vivos – e, na medida do possível, equilibrados.
O longa, que foi selecionado pelo Uruguai para representar o país no Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro, termina com a retomada da democracia, a soltura do trio e a informação de que, mais tarde, depois de tanto sofrimento, o ex-guerrilheiro José Mujica seria eleito democraticamente como presidente do Uruguai.
Uma Noite de 12 anos é um filme difícil, repleto de cenas duras e de retratos sobre o que o ser humano pode ser de pior. Mas é também, de alguma forma, uma obra poética e esperançosa, que encontra beleza nos detalhes das relações mais estraçalhadas, sendo capaz de se fazer sentir pela dor, pela maldade, pela empatia, pela solidariedade, pela irmandade, pelo companheirismo, pela loucura e até pelo riso.
E mais do que peça exposta para contemplação, o filme de Brechner se converte em um exercício de coletividade impressionante ao retomar o verdadeiro significado de ir ao cinema; de estar numa sala repleta de pessoas desconhecidas que compartilham, por um par de horas, da mesma experiência que você.
No Brasil, o longa estreou em circuito comercial no final de setembro de 2018. Permaneceu em cartaz por semanas (algo raro para um filme de seu porte) e tornou-se uma atividade política. Em pleno período de campanha eleitoral brasileira, pessoas iam até o cinema em busca da catarse coletiva, do compartilhamento de lágrimas de dor e de gritos por democracia, todas procurando por algo que só um filme sobre Pepe Mujica poderia oferecer: um alento, talvez.
*Uma Noite de 12 Anos está disponível no catálogo da Netflix
PEPE, UMA VIDA SUPREMA
Ao contrário da ficção Uma Noite de 12 anos, que delineia a jornada do herói de Mujica, desde o sequestro político até a Presidência da República, quando ele se torna também um líder político internacionalmente prestigiado, o documentário Pepe, Uma Vida Suprema permite que Mujica fale sobre si mesmo e suas ideologias de forma despretensiosa.
Em conversas casuais com o diretor Emir Kusturica, Mujica conta sobre como encara seus últimos dias como presidente, compartilha pensamentos sobre suas relações com o poder, com a política, com a natureza, com os companheiros de resistência e com a esposa Lucía Topolansky, também ex-Tupamaro e senadora do Uruguai. Fala ainda sobre os dias no cárcere e as consequências das violências que sofreu.
Pepe, Uma Vida Suprema funciona como uma espécie de “Mujica por ele mesmo”. Kusturica provoca e questiona, pontuando alguns temas de interesse para seu filme, mas também cala e pratica a escuta com prazer. Ouvir Mujica parece encantador, e o efeito da oratória potente do ex-presidente recai inevitavelmente sobre o público. Pepe pode não ser uma unanimidade – sempre há oposição, afinal -, mas é um exímio articulador, alguém que faz das tripas coração e adere cada elemento de sua trajetória aos “causos” que narra como um verdadeiro contador de histórias. Porém, ele garante: é apenas um homem. E apesar de ter vivido, aprendido muito e contado boas histórias, heroísmo tem a ver com força coletiva.
Juntos, os dois filmes completam uma linha cronológica sobre a jornada de José Mujica, pontuando o que o levou até a presidência de seu país e o que o fez desistir de concorrer novamente ao cargo. Cada qual com suas particularidades, mas ambos tratando de um mesmo protagonista: o homem que, depois de ter vivido as várias faces da desumanidade por 12 anos, entrou pra história com opiniões e visões de mundo inestimáveis.
*Atualização em 30/07: “Pepe, uma vida suprema” foi exibido no Brasil durante o Festival do Rio 2018 e agora está disponível na Netflix.
Assista ao trailer de “Uma Noite de 12 Anos”:
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